A Voz da Terra e as vozes a concurso
A adoração de deuses tem longa idade, e estabelece entre humano (persona) e a figura ideal uma divisão. A persona aproxima e divide, aproxima e divide, aproxima e divide até ao infinito.
Aproxima porque o ideal toca e estimula o sentido de defesa de território da persona. A defesa e a perseguição do objecto adorado é algo que alimenta o poder pessoal da persona, podendo ser levada ao extremo: a persona descaracteriza-se e abandona as suas qualidades para corresponder à imagem adorada.
Divide porque a persona jamais atingirá o ideal, atingir o ideal é matá-lo. Todos sabemos bem que, quanto mais temos, mais queremos, quanto mais temos, mais queremos, quanto mais temos, mais queremos até ao infinito. Psicologicamente este querer além do ter, manifesta-se em todas as vertentes da existência, pois o nosso movimento comum com a Terra e com os astros é a espiral ... a evolução de uma força está no nosso ADN.
Eis algumas questões que lanço:
A performance mostra-te ao mundo tal como és ... ou mostra-te tal como queres que o mundo te veja? A resposta requer outra resposta a esta questão: quão honesto és contigo mesmo? E ainda outra questão: em que espaço queres que a manifestação da tua existência se expanda?
No concurso um consciente colectivo, com base em parâmetros socio-culturais, escolhe o ideal. O que define o ideal é o espaço, o tempo, a afinidade, a imagem e muitos outros conceitos/contextos definidos pela opinião do colectivo.
Esta reflexão não tem como objectivo criticar o sistema concurso. Há espaço para tudo! Pretende antes clarificar a diferença entre a Voz da Terra (natural) e a voz levada a concurso (conceptualizada).
É um facto que a voz cantada está circunscrita na nossa sociedade, e em larguíssima escala, apenas ao espaço da performance e do concurso, a voz conceptualizada.
Uma voz conceptualizada pode ao mesmo tempo ser natural? Apenas se não estiver apegada a um ideal. A voz conceptualizada liberta? Sim, liberta muitas emoções - mas não ilumina nem revela a sabedoria inerente à sua existência individualizada - pois o seu foco é o exterior e não o interior. A voz do interior é tão única como a tua impressão digital. O teu timbre é único!
O espaço natural da voz nas nossas comunidades é algo que se perdeu no tempo. A voz natural não é uma voz ideal, é uma voz animada de substância intemporal, espiritual e concretamente material - como é uma folha, a chuva ou a pedra. A voz natural é aquela que vibra nas células do teu corpo e não é definida por elementos exteriores a ela. A voz natural é aquela que se rege pelos mesmos movimentos que fazem o teu coração bater. Outra questão que coloco: conheces essa voz?
A clarificação é necessária e urgente, porque circunscrever a voz cantada ao espaço da performance é um modo de calar um poder primordial acessível a todos, um poder que liberta, cura e ilumina.
Estabelecer ideais também é natural para nós seres humanos, mas de uma perspectiva mais alargada, um ideal é apenas um conceito que se move para fragmentar e alimentar um sentido de posse de objectos/figuras adoradas.
É possível aceder ao poder primordial da voz? Sim, sempre que ris, choras, gritas ... nasces e tens acesso directo a esse poder com o teu primeiro choro. Os índios conhecem muito bem o poder desta voz, e por isso se chama ao índio também o Caboclo - aquele que brama. Há que resgatar esta sabedoria do espírito e integrá-la no canto, pois na substância deste canto/grito/clamor, corre a seiva que dá alimento a uma alegria espontânea e misteriosa ...
E tanto, tanto fica por dizer ...
imagem: Joana Soares