O Canto e as feridas abertas

09-10-2021

É uma evidência entre nós humanos, neste planeta, que a ferida é uma constante presença na vida. Ferida e Amor são duas expressões que coexistem no nosso sentido de pertença. Uma ferida aberta, no nosso planeta, é na verdade, uma via para aprendermos a amar, pois nela vibra a mentira e a verdade, sendo que a mentira tem um determinado "prazo de validade".  

O instante do canto inaudível, o primeiro toque da tua mãe que te dá o sentido de pertença - é o teu primeiro Canto. Sente estas palavras: cantas porque pertences! Pertences a uma família, pertences a um país, a um planeta, a um sistema, a uma galáxia .... pertences. 

A ferida mais imediata que se manifesta na tua voz, sendo a tua voz um espelho, um veículo perfeito e transparente da tua unicidade neste espaço de pertença, é a ferida da competição. Uma ferida aberta no consciente colectivo e que se manifesta nos micro e macrosistemas da nossa sociedade.

Basta esta frase: "eu não sei cantar", para que essa ferida seja uma evidência na tua voz. Não é fácil entender o que quero dizer com isto, estando nós imersos numa sociedade de camadas quadradas, uma sociedade fragmentada que condiciona a todo o instante o movimento intuitivo, uma sociedade até perversa no modo como distingue os seres humanos - um sistema de melhores e piores focado na ambição da mais alta performance, um sistema industrial de adoração de "deuses inconscientes" que roubam a cada instante, por via do processo industrial onde estão localizados, a sacralidade da unicidade. Perverso é uma palavra muito forte, significa ela: Que tem péssimas qualidades morais, Traiçoeiro. Que ou quem tem intenção de fazer o mal ou de prejudicar. O modo como a sociedade, através da educação, da indústria e do entretenimento separa os seres humanos entre melhores e piores é isto mesmo, um modo de operar a manipulação e a desintegração para que sejas desumanizado. 

No momento em que apontas o dedo e dizes: eu não sei cantar, estás a colocar-te, sem querer, dentro desta sociedade, ao mesmo tempo que estás a anular em ti um poder associado às leis cósmicas. que regem o sopro que te dá vida. A gravidade desta frase: "eu não sei cantar" ainda não está entendida, e a intenção deste texto é tentar informar sobre essa ferida aberta, que continuamente cultivamos em nós e nos outros. "Eu não sei cantar" localiza-te num referencial conceptualizado, dentro de um espaço de ideias e sonoridades que nada têm que ver com a natureza do Planeta Terra. 

O ser humano, na sua mais pura essência, usa o canto como um recurso de conexão, um modo de alimentar e confirmar o seu sentido de pertença a um lugar, a uma comunidade e à Mãe Terra. Questões ligadas a aspectos musicais, afinação, musicalidade, etc, não têm qualquer relevância no processo de vida em que estamos inseridos.

É preciso, entender que, um ser humano, que tenha na sua vida a missão de nutrir a Beleza, tendo nascido com uma sensibiilidade apurada e uma voz com um timbre belo, ocupa um lugar musical na vida não porque seja melhor, mas porque é um mensageiro e um curador - o mago. A sua voz faz parte do seu plano de encarnação para que assuma um papel unificante, pacificador e libertador. Traz consigo a oportunidade de oferecer através da sua voz a candura e o poder de induzir a comunidade num estado de comunhão profunda. (muito há a dizer e a descobrir ainda, sobre o papel do cantor, o mago na natureza).

Quer isto dizer, que o mago - o cantor - não canta por ser "melhor", o mago assume um papel na comunidade, da mesma forma que o artesão assume. 

Em última instância o cantor que reconhece o seu Som, sabe que ele existe simplesmente porque a Mãe Terra existe, e, uma vez, alcançada esta sabedoria, ele saberá como dar a Cantar. O cantor é, para além do mago e do curador, o professor. Ele ensina a escutar. 

Existindo diferentes papéis na vida, da mesma forma que existe o sol e a lua, o leão e a serpente, o mais importante é reconhecer antes de tudo - a Voz. Esta oportunidade de reconhecimento é-nos tirada mesmo antes de encarnarmos. Faz parte da nossa evolução o reencontro com a nossa essência - Tudo é Amor. 

Nas várias camadas do ecosistema da Mãe Terra fluem fluxos energéticos de variadas funções. O fluxo do canto infunde a matéria de uma substância "angelical". (A nossa linguagem finita não nos permite ainda entender a complexidade dos fluxos que nos rodeiam. Podemos aceder a este conhecimento porém, através da nossa intuição). O corpo humano tem processos alquímicos ainda desconhecidos que materializam na Terra um estado cósmico, através da sua Merkaba, centrada no coração. É por isso que neste momento planetário que atravessamos, é tão importante activar o coração, e cantar a partir dele, pois a nossa substância cantada é sustentação da ascenção. Há que entender o canto no seu total espectro, desde o inaudível até ao brado.

A frase "eu não sei cantar" acaba em última medida por impedir o ser humano de entrar em contacto com a sua essência cósmica. Impede-o também de ser o zelador, o guardião da Terra, que a nutre com o seu estado de graça manifesto na Alegria.  

Esta é uma das feridas que se movimenta no inconsciente colectivo e que levará ainda muitas e muitas gerações a curar definitivamente. No entanto, a grande oportunidade de voltar ao princípio mostra-se na vida de cada um, a cada instante. 

Seja este pequeno texto um pouco desse instante, para que digas dentro de ti: "eu sou humano, tal como sei respirar, também sei cantar, eu pertenço!" 

imagem: Joana Soares